Reparações? As omissões, os portões trancados da revolução e a petrificação dos cravos
Se é facto que “Abril abriu novas portas”, por onde muitos adentraram, é válido então perguntar: quem são esses que ainda se encontram à entrada, barrados e sistematicamente controlados? A quem se destinam de facto, as tão celebradas “promessas de Abril”?
Se é mesmo verdade que “Abril abriu novas portas”, interessa saber se terá igualmente fechado as suas portas velhas. As Velhas e mórbidas, as portas do império, do colonialismo, do lusotropicalismo, do fascismo e do racismo. Quando ouço “25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais!” olho consternado para as bancadas da Assembleia da República. 50 anos de Abril, 50 deputados racistas e fascistas sentados à mesa, na casa do povo que mais ordena.
É verdade que Abril chegou, mas carregando todo um conjunto de heranças de um Portugal que quis (e quer) ser grande à custa de vidas outras. Um Portugal que ainda sonha com tempos de outrora quando ditava as regras em territórios alheios, dizendo quem podia ser, existir, estar, pertencer. Um Portugal que continua a manter parte da sua população nas penumbras da história, confinados, restringidos a uma vida indigna e injusta. Um Portugal que renega os seus próprios nacionais a não ser que tenham qualidades excecionais e saibam manter uma performance de excelência. Sobre isto, e faço aqui um parênteses, o futebol ensina muita coisa, na medida em que nos faculta genuínos retratos sociais, revelando de forma crua, a hipocrisia deste país. Vem-me à mente o nome de Éder.
O Portugal que antes dizia: “Nem mais um soldado para as colónias”, é o mesmo que hoje reclama pedras e mais pedras para reabilitar ridículas estruturas coloniais. O jardim da Praça do Império foi reabilitado praticamente às vésperas das comemorações dos 50 anos da “revolução”. Este Portugal que todos os anos, no 25 de Abril, exibe cravos na lapela, é o mesmo onde o hino e a bandeira nacionais são mantidos intactos e intocáveis pelos guardiões da memória quinhentista.
Não é irónico que um cidadão português, negro, que não se revê nesses símbolos nacionais, usufruindo da (suposta) liberdade de Abril, para tecer críticas seja judicialmente condenado a pagar uma multa ? Pois é. O artigo 332 do código civil diz o seguinte: “Quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias”. Ora, também no tempo da PIDE, havia coisas assim, escritas na lei, que restringiam a liberdade e erigiam o cidadão “revoltoso” à condição de criminoso. O colono que não prestava juramento à bandeira portuguesa, era um traidor do Estado. Criticar o Estado colonial e fascista, levou muitos ao terrível campo de morte lenta, Tarrafal.
Este “Portugal dos Pequenitos” que fala de irmandade e de conexões lusófonas (uma caricatura da falhada solução federalista”) é o mesmo que se descreve a si mesmo nos manuais escolares como civilizador, e os outros como “coisas a civilizar”.
E o que dizer da marcha do 25 de Abril que tem início na Avenida da “Liberdade” onde repousa a estátua do grande patriarca Marquês de Pombal? O Tupi, uma das línguas do Brasil, foi arrasado pela política linguística pombalina. Faço mais um parênteses: A língua cabo-verdiana que, em tempos, sofreu ataques por parte do poder colonial, continua ainda relegada às margens, não obstante a sua pujança e vitalidade no tecido social português. Para quando o seu reconhecimento como língua nacional à semelhança do mirandês? Voltando ao Marquês de Pombal, o suposto “abolicionista” terá afinal exercido um “humanismo” bastante parcial e utilitarista, ao desviar o comércio escravocrata para o Brasil. No contexto dos 50 anos do 25 de abril, Marcelo Rebelo de Sousa que, em Gorée, omitiu esse facto, voltou a falar da escravatura e da colonização, afirmando que Portugal tem o dever de pagar reparações.
As reparações não são mediáticas
As discussões sobre as reparações no mundo têm um longa história, e prática. Em Portugal, num período mais recente, foram levadas a cabo pela então deputada Joacine Katar Moreira à Assembleia da República Portuguesa, mas parece que só agora, devido às declarações de Marcelo, o país e todo o mundo (branco) tem algo a dizer. O que não deixa de ser irónico quando este mesmo Presidente associou a lentidão aos orientais. E, de repente, todos temem e se indignam, apressando-se a demonstrar o quão ridículo é falar hoje de reparações. Nada surpreendente para um país que se diz herói do mar e clama uma imortalidade imaginada a partir das invasões e dos massacres. Que este tipo de discussões estejam a acontecer no contexto do cinquentenário do fim da ditadura do Estado Novo (talvez seja o termo mais interessante que revolução), informa-nos muito sobre as continuidades coloniais que estão emprenhadas nas instituições, é certo, mas também nas mentes e nos corações dos portugueses supostamente “de bem”.
O debate das reparações é complexo. Longe de ser um mero tema mediático ou discurso político-académico, é (deveria ser) uma ação que envolve muita gente, lugares, contextos e temporalidades. Não se trata de uma agenda que “Portugal deve liderar”, como diz o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Existem várias dimensões, sobretudo geopolíticas que exigem dos “danados” uma agência e protagonismo inegociáveis. Por outras palavras, é preciso poder. O poder de exigir e de obter. Fora disto estaremos apenas a “apelar, ingenuamente, ao coração dos opressores”. No início deste ano, realizou-se uma conferência no Porto sobre a questão das reparações. Do encontro, resultou um documento intitulado “Declaração do Porto: Reparar o Irreparável” com 20 propostas concretas que resumem reivindicações de longa data dos movimentos e pessoas negras em Portugal. São pautas que muita gente terá considerado mirabolantes, descabidas, irrealizáveis. Para quem os colocou em papel, manifestam pelo contrário, o poder de reivindicar sem fazer concessão. O mesmo poder que tem colocado movimentos sociais como Vida Justa nas ruas, exigindo melhores condições de vida mormente em termos de salário, habitação e saúde, para as pessoas dos bairros precarizados.
Reparar passa por colocar no topo da agenda política as exigências deste tipo de organizações de base. Reparar passa também por dar um rosto mais de abril aos espaços públicos na medida em que, neste Portugal da mitomania, em que a negação é política de Estado, proliferam espaços de violência simbólica e histórica.
Este é um país com uma sociedade cínica que, a cada 25 de Abril, mente, e mente a si própria. São tantas as hipocrisias e tantas as contradições que os milhares de cravos que circulam pelas ruas já nem cheiram a flor, petrificaram!
O que significa dizer que o 25 de Abril nasceu em África? Quem são os combatentes anónimos do 25 de Abril?
Em Abril de 2023, numa apresentação em Lisboa, a artista batukadeira Ilda Vaz das Bandeirinhas panafricanistas da Boba, face a uma plateia maioritariamente branca, perguntava: O 25 DE ABRIL NASCEU ONDE?
Nós, que lá estivemos, respondemos em uníssono: África, cientes de que o 25 de Abril é “uma festa incompleta” enquanto não se reconhecer esta verdade.
Afirmar que o 25 de abril nasce em África não tem nada de pretensioso. Significa, sim, que há verdades a serem escurecidas e reparações históricas ainda a serem feitas. Significa que, na Guiné-Bissau, o PAIGC e o povo lutaram para que houvesse Abril. Mais do que isso, significa que, em África, as lutas foram pela libertação TOTAL e essa totalidade incluía tanto o colonizado como o colono (como diria Fanon). Em 1971, num potente discurso pronunciado na Assembleia das Nações Unidas, Cabral afirmava: “Nós somos os combatentes anónimos da causa da ONU”. Para Cabral - cuja ausência no Portugal de hoje mostra a incompletude do 25 de Abril - a luta do PAIGC visava defender os valores fundamentais da humanidade. Valores esses que, curiosamente, Portugal e toda a Europa sempre afirmaram ser os legítimos herdeiros. Valores celebrados em 25 de Abril.
Sim, o povo guineense e o PAIGC lutaram por todos nós. São os combatentes anónimos da Revolução dos Cravos. Ao lutar contra o colonialismo que os oprimia estavam a lutar também por Portugal, pelos portugueses e pelo mundo. Porque a sua noção de liberdade era a de um universalismo “verdadeiramente universal”. E é esta a particularidade da luta dos povos oprimidos. São lutas cuja contextualidade não exclui a sua universalidade. São lutas destinadas a fazer tremer as bases de todos os sistemas-mundo opressivos.
Dizer que o 25 de Abril nasceu em África significa reconhecer que o colonialismo e o fascismo foram efetivamente derrotados e destruídos, mas não extinguidos. Dos escombros e das “latas de lixo da história” podem sempre ressurgir todo o tipo de monstros. “Le ventre est encore fécond, d’où a surgi la bête immonde”, relembra-nos Brecht. Aliás, a propósito, Cabral já dizia que o desaparecimento de Salazar não significaria o desaparecimento do colonialismo [ nem do fascismo]. O crescimento da extrema-direita em Portugal e em toda a Europa e as várias continuidades coloniais, mostram o quão acertada é esta afirmação.
Dizer que o 25 de Abril nasceu em África é também um lembrete e uma mensagem de esperança. Informa-nos de que o chão africano é fértil em lutas por liberdades e é de África que saem as grandes lutas pelo futuro da humanidade. Os espíritos revolucionários africanos não cessam de inspirar e contagiar o mundo. Isto é também um conselho aos movimentos negros da diáspora de que a “reafricanização dos espíritos” é um outro sinónimo do mote panafricanista back to África. Tal como a descolonização, o retorno é um movimento, uma virada, uma nova mirada, um projeto político e epistemológico (e não um mero ato migratório como infelizmente, muito se pensa).
“O 25 de abril nasceu em África” é, sobretudo, uma afirmação política que coloca África e os africanos no centro de conquistas, cuja participação não lhes é reconhecida. É outra forma de dizer que: Sabemos! Não nos esquecemos!
Importa ainda lembrar que os trabalhadores e as trabalhadoras africanas em Portugal, assim como todo o movimento negro, têm sido os guardiões, os cuidadores, os combatentes permanentes, das liberdades de abril… ainda que sistematicamente excluídos.
Dizer que o 25 de Abril nasceu em África é relembrar uma dívida ainda por pagar em Portugal cujas colónias internas, bem antes do 25 de Abril de 1974, já tinham as suas zonas libertadas, estas Áfricas daqui onde a luta que hoje é celebrada foi também imaginada.
Uma batucadeira, empregada de limpeza, perguntou (O 25 DE ABRIL NASCEU ONDE?) e a sua indagação fez justiça a milhares de combatentes anónimos da revolução.
No contexto dos 50 anos do 25 de Abril, marcados pelo avanço do racismo, da xenofobia e da negação enquanto política de Estado, o desafio ficou lançado.
Pergunta-te Portugal! Quiçá nas perguntas nos encontremos… num Abril diferente sem capitães nem guardiões. Um Abril de portas escancaradas, ou melhor ainda, sem portas. Porque, afinal, as flores da revolução não crescem em vasos nem nos jardins de uma outra “casa portuguesa”.
As flores da revolução são espécies fugitivas que invadem as ruas, procurando os matos, as florestas e territórios mais fecundos à vida. São flores que brotam nas fissuras abissais e na terra batida das “zonas de não ser”, espaços segregados onde habitam aqueles que dizem não! e “que recusam o esquecimento como método”, aqueles que polenizam as vales da morte, e conhecem a arte do enraizamento e do desabrochamento.
Que, sob a tumba dos combates anónimos, brotem cravos, lilases e jasmins de todas as cores.
Não há revolução sem reparação!